O direito de ação popular está previsto e consagrado no artigo 52.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, desde 1976, e foi regulamentado em 1995 pela Lei n.º 83/95, de 31 de agosto (também conhecida como Lei da Ação Popular ou LAP). Trata‑se do direito, conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, de intentar ações para prevenção, cessação ou indemnização por infrações contra interesses como o ambiente, a saúde pública e os direitos dos consumidores.
Porém, a verdade é que, nos últimos anos, temos assistido a um crescendo, sem precedentes, do número de ações populares e Portugal tem sido apontado como um dos países europeus mais favorável à propositura deste tipo de ações. E porquê? Em primeiro lugar, mediante determinados requisitos, qualquer pessoa ou associação pode intentar uma ação deste tipo, supostamente em representação de um conjunto de outras pessoas, cuja autorização não tem de recolher; as quais, apesar disso, se consideram representadas desde que não se manifestem expressamente contra tal representação (sistema de opt-out). Sucede que a maior parte das pessoas não imagina estar, neste momento, a ser representada numa imensidão de ações populares e, como tal, não exerce esta faculdade de autoexclusão nem, provavelmente, tem intenção de se dirigir a cada um dos processos para reclamar a sua parte da eventual indemnização que possivelmente viesse a ser determinada. Em segundo lugar, os autores deste tipo de ações estão, em princípio, isentos do pagamento de custas judiciais e, por essa razão, apresentam frequentemente pedidos milionários que, de outro modo, se inibiriam de apresentar. Em terceiro lugar, ao contrário do que sucede noutras jurisdições, em caso de condenação, se os lesados não reclamarem a sua parte, o remanescente não será devolvido ao réu, sendo entregue ao Estado, como se de uma sanção se tratasse.
Note-se ainda que, independentemente do valor de indemnização reclamado (que pode ascender a vários milhões ou cuja fixação pode ser relegada para o tribunal), para efeitos processuais, as ações populares têm um valor muito reduzido, de 60 mil euros, que dificulta a perceção real do risco financeiro e reputacional envolvido, por parte das empresas visadas.
Como nem todos os países europeus tinham já um regime de ação popular, o legislador europeu veio recentemente harmonizar, por meio da Diretiva (UE) n.º 2020/1828, do Parlamento Europeu e do Conselho, o regime das ações populares em matérias de consumo. A Diretiva foi transposta para o ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro, que entrou em vigor no passado dia 6 de dezembro de 2023.
Nos termos do artigo 2.º deste novo diploma, o mesmo aplica-se às ações coletivas “intentadas com fundamento em infrações cometidas por profissionais (…) às disposições do direito nacional e da União Europeia (UE) referidas no anexo I da Diretiva, que lesem ou sejam suscetíveis de lesar os interesses coletivos dos consumidores”. De acordo com o respetivo preâmbulo, pretende-se que este seja o regime aplicável a infrações a disposições que se encontrem “noutra legislação de defesa do consumidor em vigor no ordenamento jurídico nacional”, porém este segmento não foi vertido no texto do artigo 2.º, gerando dúvidas quanto à sua aplicação.
A legitimidade para a propositura deste tipo de ações permanece ampla, mas esclarece-se que só podem propor ações coletivas desta natureza as associações e fundações que, além de incluírem a defesa dos interesses em causa nas suas atribuições ou estatutos e de não exercerem atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais, sejam independentes e livres de influência de terceiros, em particular de profissionais com interesse económico na causa. Por outro lado, contrariamente ao previsto na LAP, que confere legitimidade ativa a qualquer cidadão, este novo diploma não confere legitimidade aos consumidores para, a título individual, proporem ações coletivas relativas a questões de consumo. Lamentavelmente, e ao contrário do que se esperava, o diploma manteve, como regra, o sistema de opt-out, que já vigorava entre nós, assim se perdendo uma oportunidade para garantir uma real legitimidade para a propositura deste tipo de ações.
Particularmente inovadora é a previsão da possibilidade e admissibilidade de financiamento destas ações por terceiros (third party funding), aliás, em termos menos restritivos do que noutras jurisdições. A título de exemplo, enquanto na Alemanha, em certos casos, se proíbem financiamentos em que seja prometida uma remuneração superior a 10%, em Portugal apenas se prevê que a remuneração não pode ir “além de um valor justo e proporcional, avaliado à luz das características e fatores de risco da ação coletiva em causa e do preço de mercado de tal financiamento”. Além disso, esclarece-se que as indemnizações que não sejam reclamadas pelos consumidores são, antes de mais, afetas ao pagamento dos encargos, honorários e demais despesas em que incorreu quem propõe a ação (incluindo, com financiadores) e só o excedente reverte para o Estado.
Volvidos nove meses sobre a entrada em vigor deste diploma, são ainda muitas as dúvidas sobre a sua interpretação e sobre a sua articulação com outros diplomas vizinhos (como a LAP, a Lei de Defesa do Consumidor e a Lei de Private Enforcement). Os próximos tempos exigem grande atenção às decisões judiciais que vierem a ser proferidas neste contexto, porque delas depende a bondade deste regime ou a sua perversão numa cruzada contra as grandes empresas.