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Produção

Blockchain traz nova era de “transparência radical” à cadeia alimentar

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Os preços dos porcos chineses atingiram máximos de 14 meses em março, a braços com um surto de febre suína africana que está a afetar animais em 28 províncias e regiões da China desde o verão de 2018. A doença, que não tem cura nem vacina, já levou ao abate preventivo de um milhão de porcos na tentativa de extinguir o surto, sem sucesso. O mercado prepara-se para um período de contínua alta dos preços e os especialistas temem que a epidemia chegue aos Estados Unidos em 2019, depois de terem sido descobertos porcos doentes na Rússia e de a Roménia ter sofrido o maior número de casos no ano passado. Haverá carne contaminada a ser exportada? E se o contágio resultar num desastre de proporções mundiais?

É aqui que o blockchain pode desempenhar um papel importante, através de plataformas de monitorização da origem dos alimentos, e foi por isso que a empresa alemã TE-Food decidiu intervir. A tecnológica está a oferecer aos governos de países afetados pela febre suína africana acesso gratuito a um dos seus produtos de rastreamento, o Livestock Management System com módulo de controlo de epidemias.

 

“Os governos estão a ter dificuldades diárias no controlo da epidemia e de futuro contágio”, explicou à Distribuição Hoje Marton Ven, diretor de marketing da TE-Food. A empresa, que lançou a plataforma FoodChain no final do ano passado, começou a sua atividade em 2016 precisamente com a monitorização de 1.200 porcos. Marton Ven adianta que a tecnologia já foi usada para ajudar a polícia vietnamita em diversas investigações de fraude alimentar e o Vietname constitui mesmo a sua maior implementação até à data.

A empresa especializa-se na monitorização da origem de alimentos com recurso a blockchain, a versátil tecnologia que esteve na base da moeda digital bitcoin, que permite um registo descentralizado e imutável de informação. Dessa forma, é possível seguir um produto desde o campo até à loja onde será vendido e identificar todos os intervenientes no seu ciclo de vida, de forma rápida e fiável. A TE-Food tem cerca de seis mil clientes a utilizar a plataforma e a ideia de intervir na crise da febre suína é a primeira iniciativa do TE-Food Charity Program, uma maneira de “ajudar países em situações desafiantes.” Mas este passo é também estratégico, uma forma de demonstrar, em plena crise, até onde o blockchain pode ir para tornar a indústria alimentar mais segura e minimizar os efeitos perigosos deste tipo de problemas.

 

A atenção da empresa começou por ser dirigida aos países emergentes, por diversos motivos. No entanto, a ambição da TE-Food é ser uma solução global, e é nesse âmbito que a sua plataforma vai chegar a Portugal em breve, pela mão do grupo Auchan. A marca francesa anunciou no final de 2018 que ia expandir o seu projeto de rastreamento alimentar para os mercados português, italiano e espanhol, algo que deverá acontecer no curto prazo.

Experiência em Portugal

 

O grupo Auchan opera 26 lojas de proximidade MyAuchan e 34 hiper e supermercados no mercado português (está em fase de unificação da marca, com descontinuação das designações Jumbo e Pão de Açúcar). A implementação da plataforma de rastreamento baseada em blockchain está a ser estudada e ainda não há data para entrada em funcionamento, mas Marton Ven refere que a TE-Food “espera lançar o primeiro piloto em Portugal dentro de dois meses.”

De acordo com a responsável de comunicação externa da Auchan Retail Portugal, Rafaela Sousa, “cada país está a avaliar e a testar de acordo com a sua realidade” e fará o lançamento da plataforma “quando tiver um modelo maduro” para o operacionalizar.

 

A colaboração entre o grupo Auchan e a TE-Food foi anunciada em novembro de 2018, após testes bem sucedidos no Vietname que começaram em 2017. O piloto foi feito com base na solução FoodChain e abrangendo três interfaces: uma ferramenta de gestão que permite às autoridades verificar os certificados emitidos pelas propriedades agrícolas, uma aplicação B2B (Business to Business) para que os operadores de logística forneçam dados e uma aplicação B2C (Business to Consumer) para que os consumidores possam aceder à informação sobre a origem do produto. É este sistema tripartido que vai ser implementado na estrutura nacional.

“Portugal aceitou o desafio e está atualmente a avaliar a melhor forma de o operacionalizar de maneira a alcançar os objetivos da plataforma”, disse Rafaela Sousa à DH. Quando anunciou os detalhes do projeto, a Auchan Retail referiu que a intenção era começar pela monitorização da origem dos frangos vendidos em Portugal, sendo que em Itália o sistema vai ser aplicado também ao tomate e em França a tecnologia está a ser usada para rastrear cenouras biológicas.

“O objetivo é envolver o máximo de produtores/fornecedores possível”, indica Rafaela Sousa, referindo que a empresa está “a trabalhar nesse sentido.” Os consumidores nacionais terão depois acesso à aplicação B2C, que irá “disponibilizar aos clientes toda a informação sobre os vários estágios da vida do produto, desde a semente até ao prato, de uma forma totalmente transparente”, frisa a responsável portuguesa.

Paralelamente, Marton Ven adiantou que a TE-Food começou a trabalhar no mercado brasileiro e o CEO da empresa, Erik Árokszállási, esteve no Brasil durante duas semanas em fevereiro “para se reunir com empresas que estão interessadas no rastreamento alimentar.” O passo é interessante também para o mercado nacional, já que Portugal é o país da União Europeia com mais trocas comerciais com o Brasil em termos relativos, segundo dados do Eurostat.

“Vemos ali muitas oportunidades”, sublinhou Marton Ven. “É um país enorme, com uma forte indústria alimentar, e as exportações são muito importantes para eles, o que é um grande motivador para implementar sistemas de rastreamento.” Os dados da AICEP/INE indicam que os produtos agrícolas são a segunda categoria que Portugal mais importa do Brasil, a seguir a veículos e material de transporte.

Marton Ven explica ainda porque é que é tão crucial levar sistemas de monitorização a países emergentes, para lá da dimensão e riqueza geográfica que permitem fortes indústrias agrícolas. “O volume de fraudes alimentares e o nível de corrupção é mais elevado, o que – combinado com o rápido crescimento da população de classe média – coloca maior pressão nos governos e empresas alimentares para melhorarem a segurança alimentar”, afirma o responsável.

Outra questão é o salto tecnológico que acontece quando as empresas de um país emergente que nunca usaram software avançam de imediato para a última geração. Como não há soluções de legado, “é mais fácil implementar uma nova aplicação móvel de rastreamento”, sem necessidade de integração de sistemas, como acontece nos países desenvolvidos.

Um terceiro aspeto é que “é mais fácil conseguir apoio das autoridades nos países emergentes”, algo que a TE-Food comprovou no Vietname e explica o sucesso que a empresa teve no país do sudeste asiático. Como as autoridades têm pouca ou nenhuma visibilidade sobre a cadeia logística, percebem que estas tecnologias vão ajudar a uma transparência inédita e útil para o seu trabalho.

A tecnologia do momento

O número de empresas e startups que incluem blockchain na descrição dos seus produtos disparou no último ano, o que qualifica oficialmente a tecnologia como uma das buzzwords do momento. Mas a TE-Food foi uma das primeiras a chegar ao espaço, em 2016, e a forma como tem crescido sinaliza a apetência do mercado por uma solução deste tipo.

De acordo com os dados da consultora Markets and Markets, que publicou um relatório extenso sobre “Blockchain no Mercado Agrícola” no final do ano passado, este segmento vale neste momento cerca de 54 milhões de euros e deverá disparar para 381 milhões em 2023, o que representa um crescimento anual composto de 47,8%.

“O incremento do blockchain na agricultura e na cadeia de fornecimento atribui-se à procura por transparência na cadeia logística, o aumento dos casos de fraude alimentar e crescentes preocupações com o desperdício de comida”, diz a consultora.

Tal como noutros mercados, a sua aplicação tem vantagens únicas devido às características técnicas em questão. “O blockchain é uma tecnologia que permite o armazenamento e processamento de dados de forma imutável”, sublinha Marton Ven. “Nesse aspeto, é superior às bases de dados profissionais, por isso pensamos que terá um papel importante no futuro do rastreamento.”

A TE-Food concorre com gigantes como a IBM, que lançou a iniciativa Food Trust em parceria com a cadeia Walmart, e há outras soluções aplicáveis neste segmento. Marton Ven apressa-se a explicar que a empresa “não é apenas uma fornecedora da infraestrutura” e argumenta que isso é uma das coisas que a distingue.

Segundo afirma o responsável, a maioria das soluções de rastreamento são compostas por uma plataforma de blockchain, uma base de dados distribuída e uma interface aplicacional para enviar dados para o sistema. “Esta abordagem requer que todas as empresas na cadeia logística saibam como e o quê identificar, como manter a integridade da informação, como recolher os dados, como processá-los, e enviá-los para o blockchain”, afirma. Um conhecimento muitas vezes parco, diz Ven, já que as empresas têm “níveis diferentes de preparação tecnológica.” A forma como a TE-Food contorna isto é fornecer “todos os elementos possíveis de rastreamento” para que os diferentes operadores escolham aqueles de que precisam.

Depois, a empresa fornece dispositivos para a identificação dos objetos monitorizados, uma app B2B para recolher dados, interfaces diversas para conectar com outros sistemas, como ERP e gestão da propriedade agrícola, o registo blockchain distribuído, algoritmos de processamento dados e uma app B2C. Será um argumento convincente? Ven acredita que sim e detalha que os seis mil clientes que estão a usar a plataforma se distribuem por vários segmentos, incluindo quintas, fábricas, grossistas, retalhistas e veterinários. Os dois tipos de companhias com maior interesse são, no entanto, retalhistas e integradores, porque “veem os maiores benefícios” neste sistema. Beneficiam, por exemplo, dos efeitos de marketing que a transparência produz, e conseguem perceber melhor a eficiência da sua cadeia de fornecimento.

Esta questão do marketing é importante, para lá da segurança alimentar, porque “pode ser usada para defender uma marca de adulterações.” Por exemplo, num mercado onde a contrafação grassa, os grupos canadianos Hamill Foods, Canada Malting, Red Shed Malting e Last Best Brewing & Distilling criaram a nova cerveja “Bock Chain”, cujas origens são rastreadas desde o campo até à lata.

Um sistema destes também permite tornar um produto rapidamente compatível com as regulações de exportação e dar às empresas formas mais rápidas e cirúrgicas de pedir a recolha de produtos sem incorrerem em prejuízos excessivos. Há mais vantagens indiretas: por exemplo, se um fruto tem 20 dias de validade na prateleira, é importante saber se chega à mercearia no 10.º dia ou do 16.º dia. “Com rastreamento, é possível encontrar os pontos de congestão da cadeia logística e resolver os problemas, o que pode levar a menor desperdício de alimentos”, diz Ven.

Negócio de futuro

Os operadores destas plataformas de blockchain, por norma, cobram mensalidades ou percentagens sobre cada transação às empresas utilizadoras. No caso da TE-Food, os pagamentos são partilhados por todos os participantes, o que garante que nenhum paga um preço muito elevado. “Geralmente, o custo do rastreamento anda em torno de 0,5% a 0,8% do custo do produto”, indica Marton Ven.

A TE-Food antecipa que a importância de plataformas como a sua aumente exponencialmente nos próximos anos e venha a ter “um papel muito importante” na certificação de qualidade. Neste momento, as certificações de alimentos biológicos ou de boas práticas agrícolas (G.A.P.) são feitas com recurso a auditorias in loco e monitorização remota, o que significa que as avaliações são limitadas no tempo. “Há uma grande parte em falta”, diz Marton Ven, “a análise de fluxos constantes de dados operacionais.” Se soluções baseadas em blockchain se tornarem comuns, tudo isto pode mudar.

“Acreditamos, e vemos essa tendência a nível internacional, que o rastreamento alimentar se tornará obrigatório no futuro”, afiança o diretor da TE-Food. Agora estamos na “primeira fase”, liderada pelas maiores empresas, que gerará o hábito de informação de qualidade nos consumidores. As empresas que não o fizerem vão levantar suspeitas, prevê Ven. E mais à frente, as autoridades vão requerer estes dados, começando nas importações e alargando depois para todos os produtos. Caminhamos para a “transparência radical” num mundo em que a tecnologia está a invadir todas as indústrias, “mas não sabemos nada sobre aquilo que comemos.”

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