Foi no passado dia 2 de junho que a IFE by Abilways reuniu cerca de 200 pessoas para um SmartPayments Congress totalmente digital. No mesmo dia em que o evento presencial deveria ter-se realizado, a organização promoveu uma sessão online em que as tendências da banca, dos meios de pagamento e da cibersegurança estiveram em debate. A edição presencial já está marcada para 22 de outubro.
Somos, ou não, uma sociedade cashless? A questão abriu o primeiro debate do SmartPayments Congress digital. Numa conversa moderada por Paulo Mendonça, diretor de redação da revista Risco, Hélder Rosalino, administrador do Banco de Portugal, Paula Antunes da Costa, country manager da Visa Portugal, Paulo Raposo, country manager da Mastercard Portugal, Sérgio Santos, diretor central de banca digital do Banco BPI, e André Ribeiro de Faria, chief marketing and consumer officer do Grupo Jerónimo Martins, tentaram imaginar uma sociedade sem dinheiro físico.
Para Hélder Rosalino, administrador do Banco de Portugal, provavelmente nunca seremos uma sociedade cashless: “não somos ainda uma verdadeira sociedade cashless e não sei se alguma vez vamos ser. De acordo com um estudo muito recente feito pelo Banco de Portugal, cerca de 60% dos pagamentos em Portugal ainda são feitos em numerário. Se olharmos apenas para os pagamentos feitos pelos consumidores nos pontos de venda, esta percentagem aumenta para 70%. Em 2019, os levantamentos de numerário ATM cresceram 1% em quantidade e 2,7% em valor. Acho que podemos de facto concluir que não temos uma sociedade cashless.”
O administrador do Banco de Portugal diz, no entanto, que é inegável o crescimento que os outros meios de pagamento têm registado nos últimos anos. “Os outros meios de pagamento cresceram e têm crescido de forma mais rápida do que o numerário. As transferências a crédito, os débitos diretos, os cartões de pagamento, as transferências imediatas, etc., têm crescido bastante. Há uma cada vez maior utilização de meios de pagamento eletrónicos e a oferta dos vários players do mercado tem vindo a criar soluções. Portugal neste aspeto tem sido inovador. Temos dos melhores sistemas de pagamentos eletrónicos da Europa e isso é reconhecido há muitos anos (…) Não sei se alguma vez poderemos ser uma sociedade cashless.”
Importância da experiência veio mudar as regras do ‘jogo’
Já Sérgio Santos, diretor central de banca digital do Banco BPI, lembrou que o que está a sofrer a maior transformação é a relação das pessoas com os bancos. Questionado sobre as implicações para o setor da banca se passarmos a ter uma sociedade cashless, Sérgio Santos explicou que este é “um movimento que já começou e que será gradual”.
“As implicações para o sistema bancário já aconteceram, pelo menos do ponto de vista de toda a estrutura que se tem vindo a preparar para este movimento. Vão existir vários movimentos, por vezes acelerados por situações como a que vivemos agora com o COVID-19, que de certa forma incentivou uma utilização maior de vários formatos. A componente de pagamentos é uma parte grande e relevante, mas é apenas uma parte de todas as dimensões da relação das pessoas com os bancos. Muitas dessas relações são hoje já digitais (…) O principal impacto terá a ver com a importância que os canais digitais começam a ter, sendo hoje o principal mecanismo de relação com os bancos”, defendeu.
De acordo com Sérgio Santos, as apps são hoje o ponto de entrada nas relações das pessoas com o seu banco, mas também a própria carteira dos clientes. Para o diretor central de banca digital do Banco BPI, o foco da banca deve estar, cada vez mais, na experiência proporcionada aos clientes.
“Vai haver um impacto muito grande que tem a ver com a concorrência pela experiência. Se o nosso ponto principal de relação com os clientes for uma app, com clientes que estão habituados às melhores apps do mundo, cria-se aqui uma pressão sobre os bancos para conseguirem entregar uma experiência que esteja ao nível do que se faz de melhor nas relações que os clientes têm com estes canais. Acho que o principal impacto será precisamente nesta interface. Temos de ter uma grande experiência para manter uma relação de proximidade com os clientes”, afirmou.
 Cartões de pagamento vão dar lugar às credenciais de pagamento
Para Paula Antunes da Costa, country manager da Visa Portugal, a digitalização dos serviços financeiros é um processo que está a acontecer há alguns anos, com tendência para aceleração nos próximos quatro anos.
“A velocidade a que nós sentimos esta transformação vai ser cada vez maior e isto resulta de dois fatores. Um é a combinação entre a evolução tecnológica e a mudança de hábitos dos consumidores. Esta junção vai potenciar a aceleração de novas formas de pagamento e a transformação dos serviços financeiros. No caso concreto dos cartões de pagamento, o que está em causa não é tanto a substituição do cartão, mas sim uma evolução do suporte de pagamento. O plástico físico que conhecemos poderá ser substituído em alguns casos, mas acreditamos que o cartão continuará a existir. O que vamos começar a ver é novos suportes de pagamento que já designamos de credenciais de pagamento. Vamos ver as credenciais de pagamento a expandir-se. Falamos aqui dos dispositivos ligados à internet, como os smartphones e os smartwatches. Vamos assistir a uma explosão dos dispositivos conectados e das credenciais de pagamento”, defendeu.
A country manager da Visa Portugal acredita ainda que a Inteligência Artificial e as ferramentas analíticas permitirão potenciar novas experiências de pagamento que até aqui eram improváveis, acelerando a transformação do setor do comércio. Em relação ao COVID-19, Paula Antunes da Costa acredita que veio acelerar a procura por soluções digitais, nomeadamente pelos pagamentos contactless.
O cliente manda
Paulo Raposo, country manager da MasterCard Portugal, acredita que o cashless é “uma tendência de futuro”, apesar de ainda vivermos numa sociedade que utiliza muito numerário.
“Sentimos que há um conjunto de evidências que nos levam a crer que tendencialmente caminhamos para uma sociedade cashless e isso tem a ver com três componentes nas quais a MasterCard tem vindo a trabalhar. Uma delas é a tecnologia. A tecnologia existe e vai sofrer uma aceleração, nomeadamente com o cloud computing e o 5G, que vem transformar toda a interação social com a tecnologia e, obviamente, os pagamentos serão impactados. Por outro lado, o tema da segurança. É fundamental continuarmos a dar confiança aos operadores e aos cidadãos. A questão da segurança é uma na qual onde não se podem fazer concessões (…) A usabilidade e a experiência do consumidor é um tema fundamental (…) Hoje quando falamos de wallets falamos da usabilidade e da possibilidade do cliente poder escolher a relação que tem”, lembrou.
Já sobre o impacto do COVID-19 no setor, Paulo Raposo diz acreditar que não houve uma mudança de paradigma, mas sim uma alteração de uma tendência a que já vínhamos a assistir noutros mercados: uma aceleração na adoção do contactless e um crescimento do comércio eletrónico. “A pandemia trouxe um efeito de aceleração na adoção destas tecnologias. Estamos a caminho do cashless e acredito que nos próximos anos vamos assistir, pela adoção de novas tecnologias, a uma alteração brutal da forma como se paga, e não estamos apenas a falar das wallets, mas sim da integração das credenciais de pagamento na chave do carro ou na porta do frigorífico que nos permita fazer compras de forma automática”, garante.
Evolução dos meios de pagamento transforma o retalho
Foi precisamente para falar da importância da evolução dos meios de pagamento e da tecnologia na disrupção do setor do comércio que André Ribeiro de Faria, chief marketing and consumer officer do Grupo Jerónimo Martins, se juntou à conversa.
Em outubro de 2019, a empresa inaugurou a loja Pingo Doce&Go Nova, no Campus da Nova SBE, em Carcavelos. Uma unidade onde basta ter um smartphone com a aplicação da loja e um método de pagamento associado para poder comprar e sair, sem ter de passar por nenhuma caixa ou filas.
“Somos um negócio de escala e aquilo que queremos é que haja várias compras e o que aconteceu foi que os utilizadores viam a loja como uma espécie de dispensa. Em vez de comprarem um cesto gigantesco, ia a uma determinada hora do dia e compravam uma coisa, depois voltavam e comparavam outra…Isto diz muito acerca de conseguir tornar a experiência e a usabilidade fantástica e seamless ao ponto de as pessoas voltarem várias vezes. Mas isto leva-nos para outro problema. É que como disse somos um negócio de escala. Será possível escalar isto? Eu acho que aqui há um ponto fundamental: as comissões dos cartões de pagamento not present chegam a ser cinco vezes superiores às comissões de um pagamento com o cartão presente. Acho que isto é uma enorme barreira para a adoção deste tipo de pagamentos. É necessário um esforço dos comerciantes, que conseguem trazer novas experiências aos consumidores, do poder público e do setor financeiro para balancear o fator volume com o fator taxa. É esta a nova fronteira”, defendeu André Ribeiro de Faria.
Envelhecimento populacional português coaduna-se com uma sociedade cashless?
Hélder Rosalino, do Banco de Portugal, lembrou ainda que mais importante do que termos uma sociedade cashless, é que o cidadão possa escolher o método de pagamento que prefere, sobretudo, “de uma forma informada”.
“O numerário tem características muito próprias que o diferenciam de todos os outros. Pode ser usado de forma anónima, pode ser utilizado em contingência, todas as pessoas podem utilizar (…) A sociedade vai evoluir para uma cada vez maior digitalização dos meios de pagamento, mas o numerário vai continuar e é bom para a economia que existam todas estas opções”, explicou.
Questionado sobre o envelhecimento populacional português e se as pessoas mais velhas poderão estar preparadas para a digitalização da banca, Sérgio Santos, do Banco BPI, referiu que o importante é perceber o que as pessoas querem.
“Acho que a principal pergunta deve ser se queremos mesmo uma sociedade cashless. Portugal não é muito diferente do resto da Europa do ponto de vista demográfico. Temos, de facto, alguns gaps do ponto de vista tecnológico, mas eu diria que não será um problema. Portugal tem reagido muito bem à adoção de inovação, desde os ATM aos telemóveis”, afirmou.
Por outro lado, Paula Antunes da Costa, da Visa, lembrou que os últimos meses vieram mostrar que a mudança de hábitos é possível, mesmo quando falamos de uma população mais envelhecida. “Se pensarmos nisso, a população mais sénior de repente passou a fazer videochamadas e a usar o WhatsApp. É possível dar esse salto quando as pessoas sentem essa necessidade ou quando são informadas sobre as opções que têm disponíveis e confiam nelas”, lembrou.
Já Paulo Raposo, da MasterCard, terminou lembrando os dados de um estudo que a empresa realizou há dois anos e que indicava que 19% dos portugueses entre os 60 e os 74 anos de idade já faziam compras online, que 67% tinha um telemóvel com acesso à internet ou smartphone e que 25% tinham a app do seu banco.
Para o country manager da MasterCard, “a necessidade faz o engenho” e se os operadores do setor “trabalharem em cooperação para criar uma solução fácil de utilizar pelos utilizadores, independentemente da faixa etária, a adoção é possível”.
“Eu não acredito que as pessoas por serem mais envelhecidas têm mais dificuldades, mas acredito que se lhes dermos as soluções que satisfazem as suas necessidades, acabam por adotar essas tecnologias”, concluiu.