Cell4Food
A deeptech que quer pôr ‘pescado de laboratório’ nas bocas do mundo
A agricultura celular está a dar passos concretos rumo à sua afirmação nas sociedades modernas e há uma empresa portuguesa a posicionar-se na linha da frente para liderar esta corrida rumo à alimentação do futuro. O DH LAB foi conhecer a Cell4Food, uma start-up que está a produzir pasta de polvo e que lidera em termos de desenvolvimento tecnológico. Dividida em vários polos, do Continente às Ilhas, a empresa liderada por Vítor Verdelho quer chegar aos pratos dos consumidores, da Ásia aos Estados Unidos, já nos próximos anos. Venha com o DH Lab conhecer este projeto que também está a trabalhar para produzir bacalhau ou cavala feita em laboratório.
Jornalista: Sérgio Abrantes | Fotografia: Rodrigo Cabrita
A Cell4Food, fundada por uma equipa de experientes empreendedores, está a desafiar os limites da biotecnologia com um projeto audacioso que visa revolucionar a produção de alimentos a partir da agricultura celular.
Com foco no pescado cultivado em laboratório, a start-up portuguesa está a trabalhar para trazer ao mercado o tão desejado “peixe de laboratório”, começando com a produção de pasta de polvo, mas com planos ambiciosos de expandir para outras espécies marinhas, como bacalhau, cavala, camarão e lagosta.
Ao contrário das típicas startups de biotecnologia que surgem a partir do meio acadêmico, a Cell4Food nasceu de uma equipa de fundadores altamente experientes, com décadas de vivência no setor da biotecnologia e do empreendedorismo. Vítor Verdelho, CEO da empresa, tem uma vasta experiência, tendo criado diversas empresas de sucesso na área da biotecnologia. Juntam-se a ele profissionais com vasta experiência em gestão financeira, direito e ciência, todos com o objetivo de criar uma solução disruptiva para a indústria alimentícia global.
“A Cell4Food não é uma empresa académica, embora colaboremos com várias universidades. A nossa equipa é formada por pessoas com uma experiência muito prática, o que nos permite olhar para este desafio de uma forma pragmática, sem perder de vista o impacto real que queremos gerar”, explica Verdelho ao DH LAB.
Produção em laboratório reduz consumo de água e energia em até 90% e elimina contaminantes como microplásticos e metais pesados
A aposta da Cell4Food foi clara: focar-se no mercado de alimentos marinhos, mais especificamente no polvo, um dos pratos mais emblemáticos da gastronomia portuguesa mas também consumido em todo o mundo, e expandir a produção para outros frutos do mar. A ideia, porém, não é ‘vender’ o produto, mas sim desenvolver a tecnologia para que possa ser comprada.
Como funciona a agricultura celular no setor marinho
O processo de produção de “pescado de laboratório” começa com a obtenção de uma pequena amostra de células do animal, como o polvo. Essas células são depois cultivadas em biorreatores, um ambiente controlado onde se replicam e crescem até atingir a quantidade necessária para produção alimentar. Embora o processo pareça simples, a verdadeira complexidade está na replicação da textura e sabor autênticos, características que fazem do polvo, por exemplo, um prato irresistível para milhões de consumidores ao redor do mundo.
“O maior desafio que enfrentamos não é a produção das células em si, mas sim a recriação da textura e do sabor. O polvo tem características muito específicas e estamos a trabalhar para que o produto final, quando chegar ao prato, seja uma verdadeira representação do original”, conta Verdelho. A empresa já tem protótipos da pasta de polvo e continua a ajustar o processo para garantir que o produto seja tão próximo quanto possível do que os consumidores esperam.
A Cell4Food tem, também, uma visão mais ampla. Embora o polvo seja o foco inicial, a empresa já está a investigar outras espécies marinhas, como o bacalhau e a cavala, e até mesmo organismos mais caros e difíceis de obter, como camarão e lagosta. Para isso, a empresa utiliza uma abordagem multidisciplinar e faz parcerias com laboratórios e universidades em diferentes locais do país, incluindo Açores, Lisboa e Braga.
O caminho para a escalabilidade: Licenciamento de tecnologia
Ao contrário de outras empresas no setor, que tentam produzir os alimentos diretamente para o consumidor final, a Cell4Food adota uma estratégia de licenciamento da sua tecnologia para empresas que já operam no mercado. Verdelho explica que a estratégia é permitir que as grandes marcas, que já possuem infraestrutura para produção e distribuição, possam aplicar a tecnologia de cultivo celular nas suas próprias fábricas e sistemas de produção.
Cell4Food aposta no polvo como primeiro produto de pescado cultivado em laboratório e planeia expandir a sua oferta
“O nosso papel não é ser um produtor de alimentos, mas sim um fornecedor de tecnologia. A ideia é que empresas com experiência no mercado alimentício possam usar a nossa plataforma tecnológica para produzir e comercializar os produtos finais. Já estamos em conversações com várias empresas, especialmente no Japão, onde temos um grande interesse”, diz Verdelho.
Esse modelo de negócios B2B (business-to-business) coloca a Cell4Food numa posição estratégica para acelerar o processo de comercialização, minimizando riscos e expandindo rapidamente a sua presença no mercado global. Para o Japão, um dos maiores consumidores de frutos do mar do mundo, a empresa já firmou parcerias com algumas das maiores empresas de processamento de frutos do mar do país.
Sustentabilidade: a vantagem do pescado de laboratório
Num mundo cada vez mais preocupado com a sustentabilidade, a agricultura celular apresenta-se como uma solução inovadora e necessária. A produção de peixe tradicional está a ser ameaçada pela poluição dos oceanos e pela pesca insustentável, enquanto a aquacultura, embora uma alternativa, enfrenta desafios ambientais significativos, como o uso excessivo de água e a contaminação por produtos químicos.
A Cell4Food aposta numa solução sustentável. “Ao produzir pescado em laboratório, conseguimos reduzir drasticamente o uso de água e energia, e a pegada de CO2 associada à produção alimentar. Além disso, evitamos a poluição dos oceanos com microplásticos e metais pesados, substâncias que estão presentes no pescado tradicional”, afirma Verdelho.
O impacto ambiental da agricultura celular é significativamente inferior ao da pesca tradicional. A empresa estima que o consumo de água e energia na produção celular seja cerca de 80% e 90% menor, respetivamente, do que o necessário para a produção convencional de frutos do mar. Além disso, os produtos cultivados em laboratório são livres de contaminantes como microplásticos e metais pesados, que frequentemente afetam as espécies marinhas.4
Desafios regulamentares e o futuro da alimentação
Embora a agricultura celular seja promissora, as barreiras regulatórias têm sido um obstáculo significativo para a expansão. A regulamentação atual, especialmente na Europa, exige que todos os novos alimentos passem por um longo e rigoroso processo de aprovação, o que pode levar anos até que um produto esteja disponível para os consumidores.
A Cell4Food está atenta a esse desafio e já iniciou o trabalho no desenvolvimento de dossiers regulatórios desde o início. Neste sentido, Verdelho defende que a legislação europeia deve (ou pode) evoluir para facilitar a aprovação de alimentos celulares, e que é necessário criar um ambiente regulatório mais flexível, como as “sandboxes” (áreas de teste com regulamentação simplificada), já adotadas em alguns países como o Japão e a Coreia.
“É importante criar regulamentações que permitam que a tecnologia seja testada e aprovada de maneira mais ágil. Se ficarmos presos a um modelo rígido, podemos atrasar o avanço de uma solução que é crucial para o futuro da alimentação”, afirma Verdelho.
Com os consumidores cada vez mais preocupados com a saúde e com a sustentabilidade dos alimentos, a aceitação dos produtos de agricultura celular está a crescer e estudos recentes indicam que mais de 60% dos consumidores portugueses estão dispostos a experimentar alimentos cultivados em laboratório, como o polvo e o bacalhau. Verdelho acredita, por isso, que, com o tempo, o pescado de laboratório deixará de ser uma curiosidade e passará a ser uma escolha natural para muitos.
Empresa já prepara dossiers regulatórios para acelerar aprovação na Europa e defende criação de “sandboxes” regulatórias
“A aceitação por parte do consumidor vai aumentar à medida que as pessoas se habituem aos produtos. Quando se trata de alimentos convencionais, já consumimos alimentos geneticamente modificados, como frango aviário, há décadas. O pescado de laboratório será apenas mais um passo nesse processo de adaptação”, conclui o responsável da empresa.
A Cell4Food está assim a caminho de transformar a maneira como o mundo consome frutos do mar. O futuro da alimentação pode estar em biorreatores, e a empresa portuguesa tem o potencial de liderar esta revolução alimentar.
O QUE SÃO AS SANDBOXES?
Uma sandbox de teste científico é um enquadramento regulatório especial criado para permitir que empresas e investigadores experimentem novas tecnologias, processos ou produtos num ambiente controlado.
Características principais:
• Regulamentação flexível: suspende ou simplifica temporariamente algumas exigências legais.
• Escopo limitado: define quais produtos, quantidades e riscos são permitidos no teste.
• Monitorização rigorosa: autoridades acompanham os resultados em tempo real para avaliar segurança, eficácia e impacto.
• Duração finita: existe por um período definido, após o qual os dados recolhidos ajudam a decidir se o produto pode ser aprovado ou se precisa de novas regras.
Na agricultura celular, isto permite testar alimentos cultivados em laboratório no mercado mais cedo, recolher feedback de consumidores e dados de segurança antes de uma aprovação definitiva.