Quantcast
Legal Insights

O Regulamento dos Mercados Digitais: em busca de um level playing field?

O Regulamento dos Mercados Digitais: em busca de um level playing field?

O Regulamento dos Mercados Digitais entrou em vigor em novembro de 2022 e o grosso das suas disposições começará a aplicar-se em todos os Estados-membros, a partir de 2 de maio de 2023.
Com este Regulamento da União Europeia, nascem obrigações e proibições muito diversas para as empresas designadas pela Comissão Europeia como “controladoras de acesso” ou gatekeepers, regras essas destinadas a garantir a disputabilidade e a equidade dos mercados digitais, e, portanto, a nivelar as regras do jogo.
Abrangidas pelo “selo” de “controladoras de acesso” ficarão as empresas i) com um impacto significativo no mercado interno; ii) que prestem um serviço essencial de plataforma que funcione como “porta de acesso importante” para os utilizadores profissionais alcançarem os utilizadores finais, e iii) que gozem de uma posição enraizada e duradoura nas suas operações (ou, no caso de um “controlador de acesso emergente”, que se espera que dela venha a beneficiar num futuro próximo).
Apesar da abertura ou aparente indeterminação destes critérios, o Regulamento estabelece presunções assentes em limiares respeitantes, quer ao volume de negócios anual e capitalização bolsista da empresa, quer ao número de utilizadores finais e profissionais ativos na União. Ao passo que estes limiares consentem uma designação “direta”, as empresas que não os atinjam poderão, ainda assim, ser designadas como gatekeepers, na sequência de uma investigação de mercado, que aponte para a respetiva qualificação.
Em qualquer dos casos, aos controladores de acesso será exigido o respeito por um conjunto de regras, sendo-lhes vedados comportamentos como os de combinar dados pessoais provenientes de diferentes serviços essenciais de plataforma; impedir os utilizadores profissionais de propor os mesmos produtos ou serviços aos utilizadores finais através de serviços de intermediação em linha de terceiros ou através do seu próprio canal de vendas diretas em linha, a preços ou em condições diferentes dos propostos através dos serviços do controlador de acesso; ou, ainda, tratar de forma mais favorável, em termos de classificação e da indexação e do rastreamento associados, os serviços e produtos propostos pelo próprio em comparação com serviços ou produtos semelhantes de um terceiro.
Além de proibições, o Regulamento lista, ainda, comportamentos que são exigidos ao controlador de acesso, entre os quais, e a título meramente exemplificativo, permitir e tornar possível a nível técnico, quer a desinstalação, pelos utilizadores finais, de quaisquer aplicações informáticas no sistema operativo do controlador de acesso, quer a instalação e a utilização efetiva de aplicações informáticas ou de lojas de aplicações informáticas de terceiros que utilizam ou interoperam com o seu sistema operativo.
Para quem esteve atento às investigações da Comissão Europeia e das autoridades nacionais da concorrência nos últimos anos, as obrigações previstas no Regulamento não são novidade. Pelo contrário, a praticamente cada uma delas é possível associar casos específicos (sobretudo em matéria de abuso de posição dominante), envolvendo algumas das gigantes tecnológicas, como a Google, a Amazon ou o Facebook (Meta).
E eis, pois, a grande crítica que se pode dirigir a este Regulamento: a circunstância de procurar regular os mercados digitais (desiderato já de si de concretização difícil), através da generalização de casos concretos, ora aplicados numa abordagem do tipo one-size-fits-all, que desconsidera as particularidades do modelo de negócio das diferentes empresas-prestadoras de serviços essenciais de plataforma.
Mais! O próprio processo de designação, assente em limiares relativos ao “poder económico” da empresa, labora sobre a presunção de que o “grande é necessariamente mau” e numa visão parcial das plataformas digitais (de todas elas!) como necessariamente más. Circunstância que, além de confundir a grandeza com a qualidade de “guardiã de acesso”, arrisca mesmo produzir um chilling-effect à inovação. Repare-se, em acrescento, que à empresa designada, não é sequer possível provar a(s) eficiência(s) decorrente(s) de um tipo específico de prática, ou afastar a proporcionalidade ou a razoabilidade da aplicação de determinada obrigação (e em determinada extensão), à luz de interesses legítimos, como a integridade, a segurança e a privacidade dos seus serviços (os quais objeto de consideração apenas por referência a um conjunto limitado de obrigações).
Naturalmente, são várias as vantagens da regulação ex ante… até à luz da sensação de “falhanço” das regras e dos quadros conceptuais da concorrência. Acontece, porém, que a lógica “simplista” em que ancorado o Regulamento, se bem que amiga da celeridade, da eficácia, da certeza jurídica, e, porventura, facilitadora da invocação de danos pelos lesados pelo incumprimento dos controladores de acesso, deixa muito desequilibrados os pratos da balança, desde logo, no que se refere à liberdade de empresa como direito fundamental, e à proteção dos direitos de defesa e das garantias do due process em Estado de direito.
With great power comes great responsibility. Sem dúvida…
Mas importa que o enquadramento regulatório do poder se contenha em quadros adequados e proporcionais, não podendo ignorar-se que os custos para as empresas poderão sempre, e num efeito de ricochete, representar custos sociais. Enormes, e evitáveis.

 

Não perca informação: Subscreva as nossas Newsletters

Subscrever