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Retalho

No grande evento do retalho, o apocalipse foi adiado

No grande evento do retalho, o apocalipse foi adiado

Robôs, drones e realidade aumentada: o desfile de soluções inovadoras na conferência da NRF, em Nova Iorque, foi acompanhado de otimismo, apesar da consciência de que é preciso ‘reimaginar’ o retalho na era digital.

Na mesma semana em que a megacadeia de lojas de departamento Sears sobreviveu à liquidação total, renovando a esperança de manter as suas 400 lojas abertas nos Estados Unidos, Nova Iorque assistiu à maior enchente de sempre na mais importante convenção mundial dedicada ao retalho. Foi um sinal forte de que a indústria está dinâmica e vibrante, apesar de todos reconhecerem que se encontra num momento de inflexão decisivo. O ‘NRF Big Show’, montado pela National Retail Federation (NRF), teve um recorde de quase 40 mil participantes, que viram as inovações de 700 expositores e 500 oradores na conferência. Um ano depois da derrocada da Toys‘R’Us e no momento em que até a H&M decidiu encerrar lojas, o NRF 2019 serviu para mostrar que a transformação da indústria não significará, como muitos vaticinaram, a morte anunciada das lojas físicas.

 

“É um erro pensar que encerramentos vão acontecer em todo o lado no retalho físico”, disse à DISTRIBUIÇÃO HOJE o analista Nicholas Finill, da consultora ABI Research, que esteve em Nova Iorque para o ‘Big Show’. O especialista sublinhou que algumas cadeias “tiveram lucros muito interessantes no último ano” e que várias casas de análise estão a rever em baixa o ritmo de crescimento do comércio eletrónico em comparação com as lojas físicas. “Talvez seja um sinal de que o retalho físico está a produzir resultados”, indicou Finill. “Não é a morte do retalho, são dores de crescimento”.

O que o analista viu no NRF 2019 foi um reflexo da necessidade de “caminhar para um modelo diferente”, alavancando várias tecnologias interessantes que permitirão coexistir com o online, tais como inteligência artificial, dispositivos da Internet das Coisas, visão por computador e outras soluções ainda não massificadas, como blockchain e realidade aumentada. O que os retalhistas terão de fazer é apelar a um tipo de cliente diferente, mas que ainda tem necessidade de lojas físicas. Tudo depende do negócio e da estratégia, referiu. “As lojas de departamento estão a ter dificuldades em sobreviver porque não se especializam, não encontraram um nicho”.

 

Depois há as mudanças exemplares, como a da marca britânica Ocado, que diversificou o seu modelo de negócio. “Não é apenas uma retalhista online que entrega mercearias, mas também tem um modelo de licenças para a sua tecnologia, que expandiu para os EUA com a Kroger”, salientou o analista. “Ter receitas da própria tecnologia é muito inteligente: mostra visão de longo prazo”.

No grande evento do retalho, o apocalipse foi adiadoA invasão dos robôs
Um dos stands que esteve sempre apinhado no evento foi o do conglomerado chinês Alibaba, que apresentou no NRF 2019 o conceito de empregados de mesa robóticos da sua marca de supermercados Freshippo. O analista de retalho da Gartner, Robert Hetu, destacou como inovação que mais chamou a sua atenção precisamente “a automação dentro da loja e a digitalização da experiência do cliente mostradas pela Alibaba”. O conceito não é novo, mas a forma como a marca chinesa está a executá-lo nestes supermercados, sim. O consumidor usa códigos QR para selecionar uma mesa e encomendar a sua comida através do smartphone, um processo rápido e sem fricção. A informação chega à cozinha imediatamente e quando os pratos estão prontos, são colocados em robôs que usam RFID para detetarem onde o cliente está sentado e sensores para determinarem o melhor caminho para lá chegar. Quando a bateria fica fraca, retornam à base (ao estilo aspirador robótico) e recarregam.

 

“A Alibaba foi impressionante”, confirma Nicholas Finill. “O motivo é a sua capacidade para integrar, de forma bem-sucedida, operações de e-commerce em lojas físicas, conseguindo o melhor dos dois mundos com capacidades logísticas e uma oferta de experiência de consumidor impressionante e baseada em tecnologia”, justificou. Ao invés de comprometer a qualidade com esta mistura de online e offline, a marca consegue elevá-la. “Neste sentido, são um modelo valioso a ser seguido pelos retalhistas omnicanal”, sublinhou o analista.

A robótica é, de facto, uma das grandes tendências do ano. O ‘Big Show’ teve mesmo uma sessão intitulada “Porque é que há um robô na minha loja?”, que contou com o presidente dos supermercados Giant Food Stores, Nicholas Bertram. O executivo anunciou que a cadeia terá um robô chamado Marty nas suas 172 lojas nos EUA, depois de um período bem-sucedido de testes. Visualmente, o robô é curioso porque tem 1,92 metros de altura e apresenta dois olhos esbugalhados que parecem saídos de um brinquedo para crianças. Mas a sua missão é muito menos fantasiosa: vai rolar pelos corredores dos supermercados para identificar zonas onde é precisa a intervenção dos empregados, nomeadamente ao nível da limpeza. Depois, poderá começar a monitorizar as prateleiras para perceber onde há falhas de produtos.

 

Esta é uma área fundamental para melhorar a experiência do cliente dentro da loja, considera Nicholas Finill. “As prateleiras vazias são um problema real no retalho”, atesta. Para resolvê-lo, é preciso uma combinação de tecnologias, tais como visão por computador ao nível da prateleira, etiquetas de prateleira eletrónicas e os tais “robôs que andam pela loja a identificar informação sobre o que está nas prateleiras a cada momento e permitindo atualizações em tempo real”. O analista afirma que este investimento “permite manipular o inventário conforme as necessidades e melhora a experiência do consumidor, porque há mais disponibilidade de produto nas prateleiras”.

No grande evento do retalho, o apocalipse foi adiadoÉ o que refere também Mark Hung, especialista da Gartner em IA e IoT. “Os consumidores não veem hoje muitas diferenças nas lojas, porque muitas destas inovações ainda não foram implementadas em escala”, argumenta. “Quando os retalhistas começarem a adotar a IoT em maior escala, algumas das frustrações que os consumidores têm em termos de disponibilidade e variedade dos produtos serão reduzidas”, prevê.

Além dos robôs, também se antevê uma explosão na utilização de drones. O stand da Intel na NRF 2019 foi o palco de lançamento de uma empresa de drones autónomos – Pensa Systems – cujos dispositivos foram desenhados para voar dentro das lojas. O interessante não é apenas a sua capacidade de identificar falhas de stock nas prateleiras, mas também a utilização de Inteligência Artificial para começar a prever que produtos vão esgotar e quando. A tendência é clara: enquanto em anos anteriores várias novidades de software e hardware foram apresentadas de forma isolada, agora está tudo ligado. A IA, a analítica, a IoT e a nuvem são a cola que une a transformação digital do retalho.

A inovação invisível
Para lá dos espelhos de realidade aumentada e os empregados robóticos, um grande incentivo da aplicação de tecnologia ao retalho e consequente transformação digital está agora nas partes que são invisíveis aos consumidores. “Durante décadas, foi dada mais importância a tornar o retalho focado no consumidor e na sua experiência. Isso não vai acabar, mas o que os retalhistas estão a perceber é que investir na cadeia de fornecimento pode beneficiar a experiência do consumidor”, explica Nicholas Finill. A ABI Research está a ver “a adoção de muito mais tecnologias para reduzir o tempo de entrega”, tais como robótica nos armazéns e soluções de gestão de inventário, “que podem melhorar a visibilidade e a inteligência dentro da cadeia de fornecimento”, o que, por sua vez, reduz o tempo de chegada dos produtos ao mercado.

No grande evento do retalho, o apocalipse foi adiado

Shop and AI. e-commerce concept.

Na NRF 2019, esta ênfase foi bem visível. “Os retalhistas estão a acordar para o facto de que a transformação da cadeia de fornecimento é uma alavanca‑chave não apenas para melhorar os resultados e a eficiência operacional, mas também para a experiência do consumidor”. Finill ficou impressionado com as inovações viradas para o armazém apresentadas pela Panasonic e pela Zebra Technologies. No primeiro caso, a tecnológica nipónica revelou a solução Visual Sort Assist, um software de semiautomação que combina análise de códigos de barras, projeções e tecnologia de sensores 3D para detetar e rastrear pacotes em armazém. A ideia é reduzir custos e aumentar a rapidez do processo. O fabricante também introduziu soluções de voz para “tornar os trabalhadores mais eficientes e precisos”.

Já a Zebra Technologies demonstrou soluções de gestão de inventário e armazém, incluindo um leitor RFID com Android e uma plataforma de sensores que registam todo o tipo de dados, SmartLens.

“É evidente que o RFID está de volta como uma tecnologia poderosa para o retalho”, notou Finill. “A Impinj e a Mojix são duas fabricantes cuja oferta amadureceu e estão a ajudar a impulsionar esta tendência”, exemplificou. Do lado da Inteligência Artificial, o foco esteve na otimização da cadeia de fornecimento. “Companhias como a Anaplan, JDA e Manhattan Associates destacaram-se e estão a demonstrar o nível de sofisticação que a IA está a trazer ao planeamento de fornecimento no retalho”.

Obstáculos no caminho
Apesar do otimismo e das enchentes no evento, continua a haver grandes obstáculos à adoção de tecnologias disruptivas no retalho e, apesar de o “apocalipse” ter sido adiado, o momento é de transformação rápida. “O retalho físico está a enfrentar muitos desafios, devido às compras online e o ambiente geral da economia”, sublinha o analista da Gartner, Mark Hung. No caso específico da Internet das Coisas, em que a proliferação de sensores e capacidade de recolha de dados promete revolucionar o setor, Hung avisa que a adoção está concentrada nos retalhistas com capacidade financeira, como a cadeia Walmart e similares.

“É um investimento muito significativo e, por isso, a maioria dos retalhistas provavelmente não terá disponibilidade para investir em IoT de forma adequada”, nota.

No entanto, não se trata apenas de dinheiro: para muitas destas empresas, diz o analista, o obstáculo também é cultural. “São retalhistas que têm de perceber como vão migrar de métodos tradicionais de organização das prateleiras para algo muito mais móvel, com foco visual, que o cliente agora quer”, explica. “As empresas ainda estão a fazer experiências e a tentar perceber qual é o melhor modelo para fazer esta transformação. Porque a indústria está com problemas financeiros e uma das piores coisas agora seria investir numa iniciativa digital que não preencha aquilo que os seus clientes estão à procura”. Já Robert Hetu apontou como principais obstáculos “a falta de uma visão concreta do futuro” para a construção de uma estratégia de negócio digital.

Nicholas Finill foi mais longe e elaborou sobre a barreira operacional. “Estes investimentos requerem capacidades imaculadas de gestão de dados”, o que significa que as tecnologias de IA e plataformas que envolvem dispositivos IoT “têm de estar muito bem integradas para contribuírem para o sistema de inteligência central”, permitindo a otimização das operações dentro da loja e dentro da cadeia de fornecimento. “Ter a infraestrutura que permite a gestão destes dados e a integração de soluções novas com as existentes é uma preocupação principal”, nota o analista.

Não é de espantar, portanto, que várias gigantes da “nuvem” tenham apostado em força nesta edição do ‘Big Show’, nomeadamente a Google, com a oferta Google Cloud, e a Microsoft, com a plataforma Azure. É que este é um caso em que a líder do setor, Amazon Web Services, não é propriamente a fabricante com quem todos os retalhistas que concorrem com a sua loja online querem fazer a migração para a nuvem.

A oportunidade é de ouro para estes fornecedores, que também estão a investir forte em áreas paralelas, como a Inteligência Artificial. O que as empresas de retalho procuram assegurar é que o retorno do investimento é assegurado, algo mais difícil de fazer numas áreas do que noutras. “Nalguns casos, o ROI ainda é um pouco vago, por exemplo, no blockchain. Nenhuma solução real comercial foi produzida para o mercado em escala, são grandes retalhistas que oferecem soluções individuais, o que significa que o ROI não é geral, mas sim isolado ao caso dessa companhia”.

Startups inovadoras ou colossos tecnológicos?
Um dos problemas que os retalhistas têm, quando começam a avaliar o investimento em tecnologias emergentes, é serem confrontados com mais que um standard ou nova plataforma. Isto coloca entraves, porque não se podem dar ao luxo de apostar na solução errada. Há também o dilema de escolher entre fornecedores bem estabelecidos no mercado ou startups com ofertas inovadoras.

No grande evento do retalho, o apocalipse foi adiado“Para aplicações de missão crítica, como bases de dados, a escolha recairá sobre fornecedores mais tradicionais, como SAP, Oracle, IBM”, vaticina Mark Hung. No entanto, um dos desafios para os retalhistas “é ter uma melhor compreensão dos clientes” e para essa questão específica é preciso ir mais além. Hung exemplifica com as vantagens do uso de bots conversacionais, que permitem automatizar o registo de encomendas e de serviço ao cliente, ao mesmo tempo que fazem análise de sentimento, para compreender melhor como os clientes estão a reagir. “É aqui que está a surgir muita inovação e onde as startups são mais ágeis a preencher esses segmentos”.

Nicholas Finill considera que tal cenário está a obrigar as grandes tecnológicas “a responderem à inovação que vem dos players mais pequenos”, porque são estes que estão a chegar com “soluções baseadas na nuvem e soluções fáceis de implementar”.

Robert Hetu é ainda mais firme: “As startups nunca tiveram um papel tão preponderante no retalho”, declara. “Os grandes players estão a tentar apanhá‑las”.

Quer a sua realidade aumentada ou mista?
Quando o fenómeno do jogo Pokémon Go levou tudo à frente em 2016, vaticinou-se uma nova era de realidade aumentada, graças à capacidade de sobrepor imagens fictícias sobre o mundo real usando a câmara do smartphone. De lá para cá, a realidade aumentada não fez as ondas que se esperavam no retalho, apesar de terem sido criadas empresas e aplicações interessantes neste espaço. No ano passado, a gigante L’Oréal comprou a empresa por detrás das apps de realidade aumentada da Sephora e Estée Lauder, Modiface, num negócio que deu frutos com o lançamento de uma colaboração de longo prazo com o Facebook.

Este tipo de soluções também se viu no ‘Big Show’, com a Cisco a montar uma réplica de uma loja física e a mostrar as várias experiências que será possível oferecer com a tecnologia. A SAP prometeu “transformar o futuro do retalho com realidade aumentada” no seu stand e houve uma sessão intitulada “Acender emoções através da RA e VR”, que contou com a participação da empresa brasileira GS&MD – Gouvêa de Souza, Foot Locker e Home Depot.

Entrar numa loja e ver como uma sombra de olhos vai ficar ou a melhor cor para um fato sem ter de o experimentar até pode ser interessante, mas segundo Nicholas Finill ainda não chegámos ao ponto de olhar para a tecnologia como uma experiência valiosa in-store. “Vê-se muito coisas do estilo realidade mista. Se os consumidores vão mesmo aderir à realidade aumentada dentro das lojas é outra coisa”, avisou. A ABI Research publicou recentemente um relatório no qual explica que a realidade aumentada “vai mudar mais coisas no comércio eletrónico e via dispositivo móvel do que na experiência na loja”. O problema, diz o analista, é que ainda não se conseguiu criar uma experiência sem fricção. “O que os consumidores querem é conveniência e velocidade, o que é particularmente verdade no retalho alimentar, ou uma experiência que é divertida e envolvente, no retalho de moda ou de valor superior”, sintetiza. Para a tendência pegar, as empresas “vão ter de passar da fase de novidade e criar soluções que realmente resolvam problemas”.

Um bom exemplo disso, mas noutra vertente, é uma aplicação chamada Hero que permite aos clientes que estão em casa interagirem com empregados na loja. A janela de chat não só garante acesso a um assistente que está ‘in loco’, mas também permite que este use a câmara do dispositivo móvel para mostrar ao cliente o item em que está interessado com vídeo ao vivo. É, literalmente, como ter um assistente de compras gratuito a partir do sofá.

Seja a criar uma forma de comprar mais envolvente ou a substituir a necessidade de ir à loja com assistentes virtuais, o foco na experiência é importante porque capta a ambição atual do retalho: tornar a jornada mais interessante, de forma a oferecer algo único que se diferencie junto do consumidor.

As tecnologias apresentadas no NRF 2019 refletem este momento de inflexão e otimismo. Na abertura do evento, o CEO da cadeia BJ’s Wholesale Club, Chris Baldwin, lembrou a audiência de que o “apocalipse” vaticinado em 2016 não aconteceu e que, apesar de ser preciso ‘reimaginar’ o setor, o momento é de inovação e dinamismo. “Gostaria de dizer que o retalho está de volta, mas isso estaria errado”, afirmou. “O retalho nunca desapareceu”.

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