A força de trabalho em regime de freelance continua a crescer e de acordo com um estudo da People Per Hour não deverá abrandar tão depressa, com a previsão de que uma em cada duas pessoas deverá trabalhar desta forma já em 2020. Motivados pelo boom do coworking ou apenas por um maior desejo de liberdade, a verdade é que muitos estão a aderir ao movimento do nomadismo digital, uma tendência que poderá ter um importante impacto nas empresas e na cultura organizacional.
Desenvolver um negócio remotamente requer disciplina e perseverança e, acima de tudo, muito trabalho. Mas se assim é, porque é que cada vez mais pequenos empresários, startups e até grandes multinacionais estão a optar por trabalhar desta forma?
Com o Web Summit prestes a ‘aterrar’ em Lisboa, vemos todos os dias chegarem ao país empreendedores que vêm não só para trabalhar e aproveitar as oportunidades de negócio, mas também para gozar do sol de Portugal e de alguma liberdade. São conhecidos por nómadas digitais e para além de estarem a obrigar as empresas a repensar o trabalho, estão a revolucionar a cultura organizacional.
Para conhecer melhor esta realidade, falámos com algumas pessoas que já se juntaram ao movimento e não, não são apenas os ‘Millennials’. São sobretudo pessoas que desejam uma vida mais produtiva e menos convencional e que conseguiram, desta forma, acrescentar valor aos seus negócios e à sua vida.
Sérgio Fernandes, consultor informático com 36 anos e fundador da Digital Nomads Portugal (DNP), trocou em 2012 o fato e a gravata pelos calções e mudou-se para a praia, começando a trabalhar remotamente em regime de freelancer para algumas empresas.
Com clientes espalhados por todo o mundo, como o Reino Unido e os Estados Unidos da América, Sérgio Fernandes não está só e revela que existem dois tipos de trabalhadores remotos: “os que trabalham por conta própria, que podemos chamar de trabalhadores independentes ou freelancers, e os que trabalham por conta de outrém, mas cuja entidade patronal permite que trabalhem remotamente”.
Para os que trabalham por conta própria “o maior desafio é encontrar clientes, manter esses clientes satisfeitos para que possa ter projetos e fonte de rendimento regular. Outro desafio, mas que penso que se aplica a ambos os casos está relacionado com a organização e foco no trabalho, a responsabilidade de ser organizado (ainda mais que uma pessoa que trabalha num escritório) e estar focado no que se está a fazer, pois as distrações quer em casa como num espaço de coworking são imensas. É preciso uma grande autodisciplina.”
Krystel Leal, fundadora da plataforma Nomadismo Digital Portugal, comunidade que criou para dar a conhecer o conceito e para partilhar a sua experiência pessoal enquanto nómada digital, traça um cenário semelhante e refere que em Portugal há cada vez mais pessoas abertas à ideia de trabalhar em qualquer lugar.
“Como todos os novos conceitos e mudanças, existe sempre um momento em que há pessoas que não percebem e olham para o trabalho remoto como uma desculpa para ficar em casa, ir à praia ou ter férias prolongadas. É difícil para muitas pessoas perceberem que trabalhar remotamente significa até trabalhar mais, porque implica que mais tarefas sejam feitas. Mas a maior vantagem é que assim podemos realmente trabalhar quando somos mais produtivos e não num horário que nos impõem”, confessa.
Portugal é, na sua opinião, um país atrativo para nómadas digitais “graças ao nível de vida relativamente baixo quando comparado com outros países do sul da Europa, à facilidade que temos com a língua inglesa e às estruturas tecnológicas e de trabalho que têm aparecido nos últimos anos. Portugal tem vindo a ser um dos países presentes em quase todos os programas de nomadismo digital e cada vez mais vemos nómadas internacionais a vir para o nosso país.”
Sobre a comunidade de nómadas digitais em Portugal, acredita que também está a crescer: “existem muitos nómadas digitais portugueses, pessoas que já seguem este modelo de trabalho e de vida há muitos anos, seguindo exemplos de nómadas de outros países, como os Estados Unidos ou o Brasil.”
É o caso é Bo Irik, holandesa que vive em Portugal há já alguns anos e fundadora da SeaBookings.com, uma plataforma online que permite reservar passeios de barco e outras atividades náuticas. A equipa da sua startup trabalha remotamente, com alguns elementos em Lisboa e outros no Algarve e em Dublin, e em outubro é a sua vez de partir à aventura. Comprou um bilhete para a Tailândia e não sabe quando regressa, mas está ansiosa por explorar o mundo e acredita que o negócio que fundou há dois anos com a irmã só tem a ganhar.
“Penso que os benefícios são poder explorar o mundo enquanto trabalhamos. No meu caso, é muito complicado tirar férias. Por isso decidi mudar de ‘poiso’, mas ficar a trabalhar (…) Para as empresas, penso que a partilha e intercâmbio de culturas, mas principalmente de boas práticas de trabalho, pode vir a refletir-se na produtividade”, explica.
Sobre a Seabookings, afirma que “o objetivo será gerir o negócio online, a partir de lá [Tailândia], sendo que o mercado principal da SeaBookings continuará a ser Portugal. Em termos de expansão estamos a apontar para o Mediterrâneo, mas para expandir o negócio da SeaBookings não é necessária presença física. A angariação e onboarding de novos operadores pode ser feito remotamente e por Skype. Para já não vejo dificuldades, pois, a SeaBookings já está a ser gerida remotamente. A única desvantagem poderá ser o fuso horário.”
Tijana Momirov, Software Product Manager freelancer e oradora em meetings para nómadas digitais, é uma acérrima defensora do movimento e dos seus benefícios, apesar de só há dois anos atrás ter ouvido falar de nomadismo digital.
“Foi estranho perceber que o trabalho independente de uma localização e esse estilo de vida atingiram um ponto crítico e se tornaram num movimento, o que fez com que tudo fosse mais fácil. Em primeiro lugar, é muito bom ter uma comunidade de pessoas que pensam da mesma forma. Os espaços de coworking, os encontros, eventos, grupos de Facebook, apps e plataformas como o Slack começaram a surgir e a atitude em relação a um estilo de vida nómada começou a mudar. Já não tenho que me explicar ou defender as minhas escolhas e estar constantemente a provar que sou uma pessoa responsável e profissional em quem se pode confiar, tendo uma caixa de correio física ou não”, revela.
O último emprego ‘das 9h às 18h’ que teve, num escritório físico, foi em 2010, em Atenas. Foi aí que começou a aprender windsurf aos fins de semana e que percebeu que precisava de mais tempo na praia e ao ar livre para viver de forma equilibrada.
“Como Engenheira de Software estava consciente de que o meu trabalho podia ser feito de forma remota com as tecnologias que hoje temos e era apenas uma questão de mindset. Mas o meu já lá estava…Tornar-me freelancer e levar a minha carreira para a estrada comigo pareceu-me uma escolha completamente natural. E foi a melhor decisão que alguma vez tomei. Já vivi em todo o mundo, fiz crescer a minha carreira, conheci pessoas incríveis e sinto-me saudável, equilibrada e, mais importante que tudo, viva.”
Hoje tem clientes em todo o mundo e colabora com equipas que, como ela, estão constantemente em movimento. “É um ambiente interessante, internacional e flexível. Requer disciplina, planeamento e gestão de cada passo que se dá – e aceitação dos riscos e das incertezas – mas é uma experiência valiosa e formativa e uma forma legítima de crescer profissionalmente e pessoalmente. Esta liberdade vem sempre associada a uma grande responsabilidade. Depende de nós. Não existe ninguém para garantir que temos um próximo projeto. Não existe ninguém para garantir que o teu trabalho está a ser feito em vez de estares a dormir uma sesta. Se a eletricidade e a Internet estiveram ‘em baixo’ é um problema teu. Mas é exatamente isso que faz com que seja muito motivador e que faz com que entremos num modo de ‘consigo fazer’, apesar das circunstâncias. Quanto mais independentes nos tornamos como pessoas e como profissionais, mais confiantes nos sentimos e apreciamos realmente uma interação valiosa e equilibrada com os colegas e com a comunidade”, confessa.
Para as empresas que têm que trabalhar com colaboradores remotos, que estão em qualquer lado e que, por isso, não podem estar constantemente a ser controlados, Tijana Momirov acredita que o maior desafio é, sobretudo, de “mindset”. “Já fiz algumas apresentações sobre gerir equipas remotas e nunca me perguntaram nada sobre a utilização de ferramentas online. As pessoas perguntam-me sempre sobre comunicação, sobre como lidar com a atração de talento, integrar novos membros na equipa, manter os stakeholders de acordo e sobre como desenvolver a cultura da organização num ambiente remoto. É tudo possível, mas requer uma nova abordagem e algum esforço adicional, pelo menos inicialmente. É preciso presença online e o ‘poderoso’ Slack com várias integrações e bots para nos manterem informados acerca de cada passo que os nossos colegas dão independentemente de onde e quando. E sobretudo é preciso valorizar uma comunicação informal. Todas as conversas de corredor precisam de acontecer em canais dedicados, como o Slack ou similares. E como líder, deve encorajar-se isso”, defende.
O que os ‘novos nómadas’ argumentam é que com a escassez de talento que algumas indústrias enfrentam já não faz sentido limitar a escolha ao espaço físico onde a empresa está implantada. “Aceitar especialistas que vêm de diferentes backgrounds ajuda a companhia a evitar estar isolada e a não perder noção das novas tendências. Pessoas muito diferentes trazem experiências muito diferentes, perspetivas e conhecimentos diferentes e tudo isso é bom para o mix da produtividade”, acrescenta.
Sérgio Fernandes, fundador da Digital Nomads Portugal, reforça esta ideia e defende que “as empresas têm muito a aprender com este novo estilo de vida e de trabalho, pois ao darem uma ‘pequena liberdade’ aos colaboradores, para que estes possam trabalhar fora do escritório, e possam evitar as filas de trânsito, poderem ir buscar os filhos à escola e terem tempo de qualidade com eles, conseguem que os seus trabalhadores fiquem mais ‘fidelizados’, estejam mais felizes e produzam mais. No meu caso, existem dias em que trabalho dez horas e sinceramente nem dou por isso. Posso trabalhar umas horas depois do jantar, mas já tive todo o dia para fazer um conjunto de coisas que me dão prazer e que seria totalmente impossível fazer se estivesse num escritório.”
Na sua opinião, terão que ser os gestores a adaptarem-se, já que “para os gestores este tipo de trabalhadores podem ser um verdadeiro ‘problema’. Terá que haver uma cultura de nomadismo digital e trabalho remoto dentro da própria empresa para que este tipo de vida/trabalho seja aceite com maior facilidade, pois aqui os desafios podem ser inúmeros, desde a comunicação entre o empregador e o empregado, uma boa ligação de internet para trabalhar, o cumprimento de prazos, disponibilidade para uma chamada via Skype, etc. Uma pessoa que se queira iniciar no nomadismo digital tem que ter tudo muito bem preparado antecipadamente (…) O meu conselho para uma pessoa que tem um trabalho tradicional neste momento e que gostava de se tornar um nómada digital é o seguinte: primeiro analisar se o tipo de trabalho permite trabalhar remotamente. Se sim, criar um caso de estudo com benefícios para a entidade patronal (e para a própria pessoa também) e apresentar uma proposta para trabalhar um ou dois dias por semana fora do escritório. Se isso for aceite e resultar, é tentar que passe para um full time…Só nesse caso é que se deve analisar a fundo se viajar e trabalhar será uma coisa que a pessoa conseguirá fazer.”
Para ajudar outras pessoas a tomar a decisão de trabalhar remotamente, Sérgio Fernandes colocou em marcha o projeto ‘6 meses na vida de um nómada digital’. O objetivo, revela, é “mostrar como é possível viajar e trabalhar” ao mesmo tempo. A mensagem será transmitida em conferências, eventos, nas redes sociais e encontros de nómadas digitais e empreendedorismo durante os próximos seis meses enquanto viaja pelo mundo.